Identidade Cristã e Católica
Quando, alguns anos atrás, publiquei meu livro ‘Ser cristão’, queria intitulá-lo, originalmente, ‘Ser cristão na igreja católica’, mas o editor achava que tal título não venderia bem... Depois, notei também que muitos leitores não perceberam minha afirmação de que o ser cristão é logicamente anterior ao ser católico. É-se católico dentro do cristianismo. O cristianismo é a tradição que vê a revelação de Deus em Jesus Cristo, enquanto o catolicismo e as diversas formas de protestantismo são ‘confissões’, digamos configurações do cristianismo.
Normalmente se é cristão dentro de alguma confissão, católica ou outra. Ser católico é uma maneira definida de ser cristão, e ser cristão é uma maneira de se colocar diante de Deus, ao lado de outras maneiras – as outras religiões ou buscas do Transcendente que sejam sinceras.
Ora, o que me preocupa é a tendência à indefinição em nossa sociedade atual. Bem sei que definir-se é difícil, pode levar até uma vida inteira. Porém, é bem mais incômodo – para os outros e para si mesmo – ser indefinido, não definir-se. É melhor definir-se provisoriamente do que não definir-se. Lembro-me de uma nipo-brasileira engajada na pastoral e na ação social conscientiza Dora (no tempo dos militares!), com radical idade quase matemática. Quando perguntei pelo segredo de sua admirável motivação, ela me respondeu: “Eu era budista. Vi que o caminho de Jesus é melhor. Então faço tudo que posso. No dia que descobrir coisa melhor, mudo”. Não mudou até hoje.
Voltando à identidade católica: para muitos católicos, ela é tradicional ou meramente cultural. Herdada. Nem sabem que com o Concílio Vaticano II, cinquenta anos atrás, as coisas mudaram. Não conhecem a ‘lógica’ da renovada liturgia dominical, concebida como continua formação do cristão mediante a leitura continuada dos evangelhos e a devida explicação na homilia. Infelizmente, houve retrocesso em relação ao espírito do Concílio: a ‘liturgia da Palavra’ foi ritualizada, os ‘leitores’ cumprem sua tarefa de mesmo modo mecânico. E das homilias nem falo...
Muitos católicos vêem a igreja como um mercado de sacramentos. Não
têm consciência do caráter comunitário, não buscam aprofundamento espiritual ou
crescimento ético. Consideram-se católicos por terem sido batizados e ter feito
à primeira comunhão, tendo, portanto, direito a casamento cerimonioso e enterro
‘na igreja’. Mas será que eles são verdadeiros cristãos, pessoas que adotam
como fonte inspiradora de sua vida a Jesus Cristo, suas palavras, seus gestos,
seu amor e fidelidade que nos revelam como é Deus?
A consciência
cristã dos católicos deixa a desejar. Contudo, para ser católico é preciso ser
cristão, aderir ao evangelho de Jesus, portanto, ser ‘evangélico’ no sentido
original da palavra. E a ‘empatia’ com o judeu Jesus de Nazaré supõe também
certa assimilação daquilo que ele herdou do povo do qual ele nasceu. Por isso a
Bíblia cristã contém o Antigo Testamento, ou seja, as Escrituras de Israel.
Tudo isso faz parte da ‘opção cristã’, que os católicos concretizam na comunidade
católica.
Insistir na identidade cristã e católica não é fechar as portas ao
diálogo, nem ser intolerante. É, antes, uma condição para poder conversar, pois
quem não se define não tem posição, não tem nada a contar. O próprio termo
‘católico’ remete à universalidade, ao diálogo.
Escrevo isso agora, porque o novo papa, Francisco, com seu jeito simples de abordar as pessoas e de dizer as coisas, talvez facilite aos católicos assumirem e expressarem sua identidade. Mas isso só será possível se os ‘quadros intermediários’ – desde os bispos até os catequistas, passando pelos meios de comunicação católicos – colaborarem para apresentar um cristianismo católico simples, direto e dialogal, voltado para o serviço aos irmãos por excelência de Jesus que são os pobres, sem se perderem naquilo que é secundário, ritualismos e devoçõezinhas de todos os tipos, arrecadações para fins escusos, tradiçõezinhas que sufocam a grande Tradição viva da palavra e da prática de Jesus de Nazaré.
Simplificar a vida da igreja católica, ir direto ao assunto, com a radical idade quase matemática da nipo-brasileira de que falei. Não muitas palavras, mas uma oração simples e reta, que nos coloque sem máscaras diante de Deus e de nossos irmãos. Ações, que, mesmo desajeitadas às vezes, sejam sinceras e eficazes por sua autenticidade.
Eis a identidade católica fundamental, que é também a de todos os cristãos: “Nisto todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amais uns aos outros” (João 13,35).
Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara.
Texto - retirado da página:
http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=3476